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Assentos preferenciais da Justiça

'A mensagem repete por vezes um agradecimento “por não dar esmolas” e pede para “denunciar a prática”. Diz que é melhor ajudar uma entidade. Mas a mulher não é uma entidade. Se tiver RG é muito, quanto mais CNPJ'

Saulo Tiossi
22/07/2023 às 07:07.
Atualizado em 21/07/2023 às 22:36

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Assentos preferenciais da Justiça

'A mensagem repete por vezes um agradecimento “por não dar esmolas” e pede para “denunciar a prática”. Diz que é melhor ajudar uma entidade. Mas a mulher não é uma entidade. Se tiver RG é muito, quanto mais CNPJ'

Saulo Tiossi
22/07/2023 às 07:07.
Atualizado em 21/07/2023 às 22:36

No trem. lá está ele, deixando mais um dia pra trás, ao sabor dos solavancos dos trilhos. Olha por sobre a cabeça dos passageiros. Seu metro e noventa de altura lhe dá uma visão privilegiada da fila de mãos agarradas ao ferro suspenso. 

Quase briga com um jovem sentado quando vê uma senhora empurrando um carrinho de bebê forrado de cobertor. Desiste no grito da falsa vovó: “Olha o carrinho de beber, geladinha, latão é 5”. Na falta de espaço, sobra criatividade. 

Os marreteiros vendem de tudo. De fone de ouvido a descascador de legumes. Muitos, sem qualquer produto, barganham suas tragédias pessoais, pelo menos nas histórias que contam. 

Ele decide dar dinheiro à moça, que trouxe os filhos. A criança maior carrega um bebê no colo, o caçula, ele imagina. A mãe ecoa pelo vagão seu martírio. Faz o trem saber da falta do botijão, dos filhos com fome, do frio, da cirurgia que precisava. Acostumada com a cena, a maioria só oberva. Alguns, como ele, tiram moedas do bolso. 

A mensagem gravada no sistema de som repete, por vezes, um agradecimento “por não dar esmolas” e pede para “denunciar essa prática”. Diz que ė melhor ajudar uma entidade de “sua confiança”. Mas a mulher não é uma “entidade”. Se tiver RG é muito, quanto mais CNPJ. 
Contrariou a recomendacão das autoridades. Mas ficou preocupado. Não se sentiu solidário, se sentiu cúmplice. Seria também denunciado? Talvez as câmeras? Testemunhas? Ficou nervoso.

Comprou a cerveja do carrinho de beber pra se acalmar. A aflição diminuiu. Conseguiu um lugar. Decidiu ver as notícias no celular. Soube da devolução de um helicóptero, para um traficante internacional por decisão da Justiça. 

Embora já estivesse sendo usado  para o transplante de órgãos, a aeronave deveria voltar para o líder do crime organizado, mesmo foragido. Sem entender direito, leu a explicação do juiz, de que a polícia só tinha autorização para prender o traficante, mas nenhum mandado para levar suas coisas. O magistrado dizia ainda que a lei era para todos. Ficou revoltado...

Foi quando levantou a cabeça e já se levantava para desembarcar. Na mesma hora viu um guarda retirando a pedinte para a estação. Sabia o desfecho. 

Seria levada até o lado de fora. O guarda até se ressente, mas precisa manter seu ganha-pão. Com as crianças terá que decidir se pede ajuda na rua ou gasta mais um pouco em outra passagem, para tentar a sorte de novo nos vagões, sabendo dos riscos, sabendo que não tem advogado.. Regras são regras.

Saulo Tiossi é jornalista

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