Psicóloga e presidente da ONG Recomeçar apontam dificuldades para atendimento de vítimas na cidade
Profissional alerta para a necessidade de uma rede de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica e da formalização das denúncias sobre agressores aos órgãos responsáveis para evitar novos episódios
Com a pandemia de Covid-19 e o consequente isolamento por ela imposto, com aulas online, profissionais trabalhando em home office e restrições de funcionamento de cinemas, shoppings e comércio, os casos de violência aumentaram, assim como a vulnerabilidade da família, alcoolismo e dependência química. O alerta é da psicóloga e socióloga Marina Alvarenga, que aponta o machismo estrutural como importante para o crescimento das ocorrências de agressão dentro de casa.
“Isoladas e vigiadas, as mulheres são impedidas de conversar com familiares e amigos, o que aumentou a margem de manipulação psicológica e as diversas formas de violência. O homem, muitas vezes desempregado, passou a dominar um território antes dominado pela mulher, na sua ausência, e como figura do macho provedor, viu-se fragilizado. Dessa forma, qualquer coisa é um gatilho para comportamentos violentos. Uma figura política que desrespeita a mulher também acaba reforçando o comportamento machista do homem que naturaliza a violência”, explica Marina.
A profissional também observa que, historicamente, “o homem manda e a mulher obedece”, numa lógica patriarcal e machista. “O isolamento, o desemprego e uso de drogas e aumento são fatores que contribuem para que isso ocorra. A ideia de que mulher tem de servi-lo perpetua-se na ideologia machista na qual a violência é institucionalizada”, considera.
A psicóloga também chama a atenção para a responsabilidade de todos na denúncia dos casos. “Agrava-se o fato de que ‘em briga de marido e mulher, não se mete a colher’. Intromete-se sim; não adianta, depois do crime, dizer que via e ouvia as brigas e violência. É preciso que a sociedade se una contra esse estado de coisas, que não a naturalize e não permita que seja invisível. A base da violência está numa sociedade androcêntrica, patriarcal e misógina, reforçada por um líder que desrespeita, continuamente, a mulher com palavras e atos”, aponta.
Mas por que ainda há mulheres que não denunciam seus agressores? Na avaliação de Marina, vários motivos podem ser apontados, entre eles, as dependências econômica e afetiva, os pré-julgamentos pelos familiares e a preocupação com os filhos, o medo e a ameaça de morte, não conhecer seus direitos e a falta de acolhimento e orientação quando querem denunciar. “Muitos profissionais não estão preparados para acolher e orientar a mulher que, muitas vezes, é julgada e desprezada ao tentar fazer uma denúncia. Além disso, a mulher que sofre violência está desamparada e acaba voltando para o mesmo cenário em que ela ocorre, sofrendo mais violência. Não se pode perder de vista a questão machista e patriarcal de que ‘homem é assim mesmo’, naturalizando a violência”, lamenta.
Para tentar mudar esta realidade, Marina diz que é preciso saber procurar a informação adequada e isso vai ao encontro de fatores como classe social, gênero e escolaridade. “Em geral, os programas educativos, os noticiários mais críticos não atingem as mulheres mais vulneráveis, que consomem apenas o lúdico ou o sangrento, aquele que acaba manipulando mais a violência do que esclarecendo”, diz.
Por isso, ela destaca o papel da mídia que, mais do que informar, precisa educar. “É preciso dizer que isso não é normal e debater o tema nos espaços frequentados pelas mulheres e homens, desde a escola fundamental, igrejas, Centros de Referência de Assistência Social (Cras). É preciso meter a colher, sim, denunciar, além de criar centros de acolhimento para as mulheres vítimas de violência, com profissionais preparados e acolhedores”, orienta.
A profissional defende, ainda, serviços de saúde de qualidade, apoio psicossocial, justiça e serviços jurídicos, abrigos e espaços seguros e assistência econômica para mulheres em situação de violência; recursos adequados para garantir o distanciamento social; programas sociais para o empoderamento econômico, social e político de mulheres e meninas, desde a escola fundamental, com educação segura e de qualidade; expansão de políticas que promovam a igualdade de gênero e programas voltados ao homem, “para que desafiem e transformem as normas, práticas e crenças patriarcais que fomentam e justificam a violência”.
Mogi quer vara para violência doméstica
Rosana diz que faltam investimentos em serviços (Foto: reprodução / redes sociais)
A ONG Recomeçar, que atende mulheres vítimas de violência doméstica e em situação de risco de morte, assim como seus filhos - crianças e adolescentes - em Mogi das Cruzes, é uma das lideranças que lutam pela criação de uma vara exclusiva para estes casos na cidade. A reivindicação é reforçada por números, já que até outubro de 2022 foram expedidas 623 medidas protetivas, sendo que, em todo o ano de 2021, este número foi de 508. Os dados são do Anexo da Violência Doméstica e Familiar do Fórum de Mogi, inaugurado em agosto último.
Apenas neste ano, entre os meses de janeiro a outubro, a ONG realizou 31 acolhimentos (13 mulheres e 18 menores) e mais de 40 atendimentos no plantão, que funciona aos finais de semana e feriados, 24 horas por dia. Mas desde 2004, quando foi criada, a Recomeçar já atendeu centenas de vítimas.
São ofertadas 20 vagas por mês, mas segundo a presidente, a advogada Rosana Pieruccetti, a demanda é maior. “O investimento nos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência é zero. A Recomeçar está lutando para pagar o 13º salário dos funcionários, porque o valor de subvenção não é suficiente”, conta Rosana, destacando que a ONG realiza campanha para arrecadação de produtos de limpeza e higiene, além de alimentos não perecíveis. Quem quiser ajudar pode entrar em contato pelo WhatsApp (11) 97513-7640.
Na Recomeçar, o acolhimento às vítimas acontece em endereço mantido em sigilo, por questões de segurança, com moradia, alimentação e assistência social, psicológica e jurídica para retomar a vida. Mas, segundo Rosana, a cidade carece de uma casa de passagem, onde diferentemente da ONG, as vítimas não precisam ficar totalmente isoladas, porque não correm risco de vida. “É um atendimento temporário e elas podem sair, levar os filhos na escola para ir trabalhar e voltar ao final do dia”, conta, acrescentando que outra reivindicação é a implantação de um Centro de Referência da Mulher.
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