Entrar
Perfil
INJUSTIÇA

Justiça inocenta duas mulheres de Mogi após seis anos de prisão

Prisão de inocentes é comum no País, que registra diversos casos de gente inocente que cumprem pena por crimes que não cometeram, como é o caso de Ana Paula e Patrícia

Silvia Chimello
04/06/2023 às 15:20.
Atualizado em 04/06/2023 às 15:20

ERRO - Advogados criminalistas alegam que a prisão de inocentes é comum no país e que é preciso aprimorar a Justiça e evitar que pessoas tenham que passar por todo o sofrimento do cárcere sem ter cometido nenhum crime (Imagem: Pexels)

A prisão de inocentes no Brasil é considerada uma prática comum por advogados que se deparam frequentemente com casos de pessoas condenadas injustamente. Tem muita gente inocente que passa anos e anos na cadeia, sem ter cometido nenhum crime, um erro irreparável para essas vítimas, que ficam com sequelas por toda a vida. 

Quando uma pessoa é  presa injustamente, a vida dela muda para sempre. Mesmo que depois a Justiça reconheça a inocência, o indivíduo continua sendo julgado pela sociedade, enfrenta preconceito e desconfiança.

Estudos sobre o sistema carcerário no país relatam diversos casos de inocentes nessa situação. Dados divulgados pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro revelam que 80% das pessoas presas injustamente passam mais de um ano atrás das grades. 

Em Mogi das Cruzes, há um caso envolvendo duas mulheres - Ana Paula Feron Rodrigues (25 anos) e Patrícia Montanaro (44 anos) - libertadas recentemente, após terem sido inocentadas em uma sentença do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, com aval do Ministério Público. 

A promotoria, órgão acusador, já havia pedido a absolvição delas no início do processo, mas não foi atendido pela Justiça.

Ana Paula e Patrícia foram presas em 2016, condenadas a 60 anos de cárcere por suspeitas de participação em um caso de latrocínio envolvendo o casal de idosos Jainer Rondina Costa e Leonel Costa, assassinados a pauladas, na cidade de Biritiba Mirim, um crime que chocou a cidade e teve grande repercussão na mídia. 

Apesar de não ter sido comprovada a participação delas no crime, as duas ficaram detidas por seis anos, mas poderiam ter passado muito mais tempo na penitenciária se não fosse a família da Ana Paula ter insistido em provar a inocência dela e, mesmo com o processo transitado e julgado, pediu ajuda da advogada criminalista Mylena Brito Souza, para tentar reverter a sentença de 60 anos de prisão.

VITÓRIA - Advogado Eric, Patrícia e a mãe, Nair, junto com Mylena (Imagem: Arquivo Pessoal)

A advogada disse que a mãe de Ana Paula pediu sua ajuda, mas ela só aceitou o caso depois de analisar o processo e estar convencida de que a sua cliente não havia participado do crime. 

Ela entrou com pedido de habeas corpus no STJ, que concedeu o benefício e reconheceu a inocência das duas mulheres. O trabalho de Mylena foi feito em parceria com o advogado Eric Antônio Ribeiro. 

No dia em que recebeu a notícia, a advogada, emocionada, relatou o caso nas redes sociais, na página do Instagram, “Razões para Acreditar”. 

Agora, a advogada prepara uma ação com pedido de indenização por parte do Estado pela injustiça, perdas, danos e constrangimento e pelos impactos na vida delas. O valor pedido deve ser de mais de R$ 1 milhão para cada uma. 

Recomeço

Elas deixaram a prisão no último mês de fevereiro. Agora, dizem que estão tentando retomar a vida, mas sabem que ainda terão que transpor algumas barreiras para lidar com as perdas e seguir em frente. “O que aconteceu comigo foi horrível. Fui vítima de um erro grotesco da Justiça. Não tem nada nesse mundo que pague o sofrimento e tudo que perdi nesses seis anos. Imagine, de repente, você ser mandada para um lugar como esses, misturada com um monte de gente, sem ter culpa, sem ter feito nada para estar ali. É muita humilhação, constrangimento, comida estragada, maus tratos, agressão e muita coisa ruim que acontece lá dentro”, comenta Patrícia.

Na opinião dela, em caso de qualquer dúvida, a Justiça não deveria sentenciar uma pessoa e acabar com a vida dela. “É melhor um bandido solto do que um inocente preso. A gente sempre vê nos noticiários muitas pessoas inocentes que ficam presas por anos. Isso tem que acabar. É preciso mais atenção para tentar corrigir a Justiça brasileira e parar de cometer essas falhas, obrigando inocente a ficarem presos, enquanto verdadeiros bandidos estão aqui fora rindo da cara da sociedade”, diz.

Além da dor de ter sido presa injustamente, ela explica que o que mais queria era provar que “não teria coragem de cometer um crime tão brutal”, especialmente contra pessoas idosas. “Precisava me livrar do peso de um crime tão violento como o que aconteceu com o casal de idosos, assassinado cruelmente pela pessoa que nos envolveu injustamente (Paulo Ademir dos Santos)”, alega. 

O autor do latrocínio teria contado com a ajuda da irmã, Marlene Conceição dos Santos, para ocultação de cadáver. Ele continua preso e a irmã morreu na prisão por problemas de saúde. 

O fato de estar presa por um crime contra idosos, segundo Patrícia, tornou a situação mais delicada ainda. Ele conta que havia uma intimidação por parte da população carcerária. 

“Já é difícil responder por algo que você não cometeu, mas quando envolve idoso e crianças, a situação é ainda mais complicada dentro da cadeia, porque é um tipo de crime que nem mesmo os presos aceitam. Passei por muitas dificuldades por não ter um espaço seguro por causa do crime que eu carregava nas costas. Lá, não adianta você falar que é inocente, porque todo mundo lá fala isso e ninguém acredita”, relata. 

Mãe de três filhos, quando foi presa aos 38 anos, Patrícia tinha uma criança de apenas 7 meses e, mesmo tendo direito, não conseguiu a prisão domiciliar. Foi feito o pedido de mãe cárcere, só que como era crime hediondo, foi negado.  

Durante todo o tempo de prisão, ela disse que os pais sempre estiveram ao lado dela e acreditaram em sua inocência.

Perdas

Patrícia conta que as sequelas da prisão são muitas. A saúde dela foi afetada, ficou hipertensa, perdeu quase toda a visão em consequência das agressões sofridas na penitenciária e por falta de cuidados médicos adequados para tratar da saúde. 

Além disso, não pôde acompanhar o crescimento da filha que ainda era bebê quando ela foi presa. Ela também teve um neto, que nasceu com problemas de saúde e morreu sem que ela tivesse a chance de conhecê-lo. “Perdi tudo. Perdi meu casamento, não vi meus filhos crescerem, não conheci meu neto. Não tem nada nesse mundo que possa pagar tudo o que sofri”, desabafa.

Ela diz que a advogada vai tentar pedir indenização para amenizar a situação e ajudá-la  a refazer a vida, “mas acho que não tem preço nenhum  que pague o sofrimento e o crime que a Justiça cometeu contra minha vida”.

Além das questões emocionais produzidas pelo cárcere, ela alega que desde que saiu da prisão, em fevereiro deste ano, está tendo dificuldade para conseguir trabalhar pelos problemas de visão, por ter ficado seis anos sem carteira assinada, pela idade e até pelo preconceito das pessoas com ex-detentas, mesmo que inocentes. 

Para lidar com tudo isso,  Patricia disse que está procurando uma terapia. Ela também explica que agora quer publicidade ao caso, quer contar sua história, se retratar e chamar atenção para esse problema para evitar que outras pessoas passem pelo que ela e a amiga passaram. “Muito tempo dentro de uma cadeia mexe com a nossa mente e a gente pega manias, sai com um monte de sentimentos. Às vezes, fico meio perdida sem saber o que fazer. Vou procurar um profissional para poder me ressocializar de novo”, diz.

Sequelas

A prisão sem culpa provocou uma profunda depressão em Ana Paula, presa quando tinha apenas 19 anos. Ela disse que não entendia o que estava acontecendo e porque não conseguiam convencer a Justiça de que ela e Patrícia, sentenciadas a 60 anos de prisão, não tinham participado do crime. 

Quando foi detida, Ana Paula tinha uma filha pequena e, mesmo assim, também não conseguiu o benefício da prisão domiciliar. Após dois anos de detenção, ela começou a receber visitas do namorado e ficou grávida. Deu à luz uma menina na prisão e só pôde ficar com a filha por seis meses. “O momento mais triste da minha vida foi quando tive que entregar a minha filha ao pai”, conta Ana Paula, que não esconde a emoção ao falar sobre o assunto.

Ela conta que durante o cárcere, tentou o suicídio em duas ocasiões, e passou a se automutilar. Disse que era vigiada o tempo todo e que precisou de atendimento psiquiátrico. Deixou a Penitenciária de Santana, no dia 4 de fevereiro, mas ainda carrega as marcas do sofrimento que passou nos seis últimos anos. 

“Senti muito ódio, porque perdi tudo. Perdi uma parte da minha vida, perdi minha saúde mental, não vi minhas filhas crescerem, perdi meus estudos, o trabalho e a oportunidade de ter uma vida normal. Vivo dopada, à base de remédios, tenho crises de ansiedade”, lamenta a jovem, que hoje, com 25 anos, está em busca de terapia para que possa seguir em frente.

Quando deixou a prisão, foi acolhida por familiares e mora com as duas filhas. Agora, ela acha que além da retratação, o Estado precisa indenizá-la por todo o constrangimento e sofrimento que passou e para ter uma estabilidade financeira, pagar um tratamento adequado para recuperar a saúde mental, superar esse episódio e seguir em frente.

Liberdade

JUSTIÇA TARDIA - Ana Paula, Mylena e Patrícia festejam a liberdade de duas mulheres presas injustamente (Imagem: Arquivo Pessoal)

No pedido de habeas corpus ao STJ, os advogados Mylena Brito Souza e Eric Antônio Ribeiro relatam os detalhes do ocorrido no dia da prisão, em 2016, versão que foi confirmada pelo próprio autor do crime, Paulo Ademir dos Santos. Inicialmente, ele disse que Ana Paula e Patrícia teriam participado do crime, mas  logo após, já na audiência de custódia, se retratou, isentando as duas de culpa, sem que o depoimento dele tivesse sido levado em consideração pela Justiça à época. Na foto acima, estão Ana Paula, Mylena e Patrícia.

O homem envolvido no assassinato ocorrido em Biritiba Mirim era dependente químico e vizinho dos idosos, Jainer Rondina Costa, de 63 anos, e Leonel Costa, de 71 anos, com quem tinha amizade e até recebia ajuda. Ele queria dinheiro para comprar drogas e durante a tentativa de roubar o carro do casal, acabou assassinando os dois. Os corpos foram encontrados em um terreno, no bairro Casqueiro. Eles foram mortos a golpes de pauladas. 

As vítimas moravam em uma casa a poucos quilômetros de onde os corpos foram enterrados. Na residência, que ficava no mesmo bairro do casal de idosos, onde o suspeito morava com a irmã, a polícia encontrou os indícios de que Paulo teria sido o autor do crime. 

Para ocultar os corpos, enterrados em um local próximo, o autor contou com a ajuda da irmã, que morava junto e foi presa e condenada no processo.  

No dia seguinte ao crime, o homem  usou o carro roubado para vir a Mogi, onde se encontrou com Patrícia e Ana Paula, conhecidas dele à época. Ele as convidou para irem até Biritiba Mirim conhecer o sítio dele. Ao chegar na cidade, pararam em um bar. Foi quando a polícia chegou e deu ordem de prisão aos três. A irmã também foi presa no mesmo dia.

Passaram pela audiência de instrução e, o Ministério Público, órgão acusador, pediu a absolvição por falta de evidência da participação delas no latrocínio. 

As duas eram rés primárias e não tinham antecedentes criminais, mas mesmo assim, foram condenadas. 
Inicialmente, a defesa foi feita por representantes da Defensoria Pública, que não conseguiram reverter a prisão, apesar da falta de provas. Foram apresentados diversos recursos para o processo, que passou por diversas instâncias da Justiça até a conclusão.

A família de Ana Paula não se conformou e procurou a advogada, que se aprofundou no processo e conseguiu a absolvição. 

“O Ministério Público não recorreu da decisão do juiz, o que reforça o argumento de inocência das duas”, comenta Mylena. 

A advogada fala sobre a emoção de todos pela vitória no caso, especialmente das famílias das vítimas. Ela fez questão de acompanhar a saída de sua cliente, Ana Paula, da prisão de Santana, em São Paulo. A decisão do STJ  também inocentou Patrícia, que só ficou sabendo que estava livre no dia em que foi solta. Esses encontros foram registrados e estão nas redes sociais de Mylena mostrando, inclusive, o momento em que deixaram a penitenciária. (S.C.) 

Conteúdo de marcaVantagens de ser um assinanteVeicule sua marca conosco
O Diário de Mogi© Copyright 2023É proibida a reprodução do conteúdo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por