Partidos tradicionais como PT, PDT e PSB travam debates internos sobre como tratar a pauta LGBTQIAP+, e o movimento negro e feminista em um país marcado pelo conservadorismo e cada vez mais evangélico
Partidos tradicionais como PT, PDT e PSB travam debates internos sobre como tratar a pauta LGBTQIAP+, e o movimento negro e feminista em um país marcado pelo conservadorismo e cada vez mais evangélico
“Dr. Rocha, me explique uma coisa: o que é essa história de pauta identitária?”, perguntou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então preso pela Lava-Jato, ao advogado Luiz Carlos da Rocha. O episódio, narrado na biografia do petista escrita pelo jornalista Fernando Morais, exemplifica não só o recente crescimento dos movimentos LGBTQIAP+, negro e feminista no debate nacional, mas a tensão que atravessa um embate interno na esquerda durante os preparativos para a eleição: qual será o tamanho desta agenda em candidaturas deste campo, em um país marcado pelo conservadorismo e cada vez mais evangélico?
O questionamento tem aparecido em declarações públicas de lideranças de partidos tradicionais como PT, PDT e PSB. A mais recente partiu de um membro do diretório nacional do PT, o diretor da Fundação Perseu Abramo Alberto Cantalice. “O identitarismo é um erro. É uma pauta criada por ativistas dos Estados Unidos e que não tem similaridade com questões brasileiras. É a velha síndrome de colonizado que permeia setores ‘progressistas’. Confundem a questão central — a desigualdade — e se divorciam da realidade do povo”, escreveu no Twitter no início de janeiro.
Em dezembro, o prefeito do Recife, João Campos (PSB), adotou discurso semelhante em entrevista ao GLOBO, ao dizer que “os problemas e as soluções do Brasil não estão nessas pautas puramente identitárias ou ideológicas”. Declarações nessa linha também foram feitas pelo pré-candidato à Presidência pelo PDT, Ciro Gomes, em 2020. Em um desses episódios, ele afirmou que, embora esses grupos sejam perseguidos e precisem de proteção, a soma dos interesses identitários “não representa o interesse nacional”.
As falas partem da premissa de que, para ganhar as eleições, o debate deve priorizar assuntos econômicos, como a desigualdade e o desemprego, deixando em segundo plano racismo, homofobia e machismo, temas que poderiam afastar eleitores de centro e de direita. Uma pesquisa divulgada pelo extinto Ibope ajuda a explicar a estratégia. O índice de pessoas que consideravam ter um alto grau de conservadorismo cresceu de 49%, em 2010, para 55% em 2018. Os brasileiros contrários à legalização do aborto, por exemplo, somaram 80%.
Cofundador da Uneafro Brasil, o educador Douglas Belchior — que se filiou ao PT e vai disputar uma vaga na Câmara dos Deputados — classifica como “retrógrada” a posição de omitir nas campanhas a agenda de direitos defendida pelos movimentos LGBTQIAP+, negro e feminista:
— São posicionamentos que negam o debate como de defesa de direitos. O que chamam de identitarismo são pautas da maioria da população. Pelo seu DNA, a esquerda tem o dever moral de enfrentar as desigualdades e, no Brasil, a desigualdade é antes de qualquer coisa racial e de gênero. A maioria da base dos partidos já tem essa percepção. Então existe uma pressão interna, inclusive em partidos de direita. É um desafio que permanece.
O posicionamento de nomes com visibilidade nas siglas se soma ainda a movimentos de diálogo de candidatos desses partidos com setores mais conservadores da sociedade, como os evangélicos, segmento que tem crescido na população brasileira e que esteve mais alinhado ao presidente Jair Bolsonaro no pleito passado. A última pesquisa Datafolha aponta que Bolsonaro e Lula estão tecnicamente empatados nesse grupo, com 38% e 34% dos votos respectivamente.
O ex-presidente Lula se encontrou no ano passado com o bispo Manoel Ferreira, líder da Assembleia de Deus de Madureira, uma das principais denominações do país, enquanto Ciro Gomes tem feito publicações direcionadas ao segmento e chegou a gravar um vídeo com uma bíblia na mão. A nível local, o deputado federal Marcelo Freixo (PSB), que pretende disputar o governo do Rio, também busca diálogo com lideranças evangélicas e se encontrou em dezembro com bispos e pastores da mesma denominação — o parlamentar tem sido aconselhado a ampliar o leque para assuntos “além da esquerda” e, por exemplo, ao tratar de segurança pública tem feito acenos a policiais.
O gesto de Lula aos evangélicos, porém, já gerou uma saia justa. Em setembro do ano passado, durante uma participação no programa “Triangulando”, do canal da vencedora do BBB20 Thelma Assis, o ex-presidente foi confrontado pela cantora e ativista travesti Linn da Quebrada com críticas a uma foto dele ao lado do deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), que já fez declarações contra a comunidade LGBTQIAP+. Na última semana, o petista também foi cobrado nas redes por não se posicionar sobre racismo reverso, debate que tomou o Twitter nos últimos dias, o que indica que deve ser pressionado ao longo da campanha a abordar o tema.
Crítico do presidente Jair Bolsonaro pelo uso de pautas identitárias como forma de fomentar a base bolsonarista, o líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes (MG), vai na contramão de Alberto Cantalice e defende que não é possível discutir os “problemas brasileiros” sem dar peso às pautas identitárias. O mesmo tom é adotado pelo presidente do PDT, Carlos Lupi, que, apesar das declarações de Ciro, afirma que a sigla não vai abrir mão da discussão.
Socióloga e professora da UFF, Flávia Rios destaca que houve uma amplificação do tema, que vem ganhando volume desde a redemocratização, com as redes sociais, mudança que gera desconforto em relação às formas tradicionais de se fazer política:
— A política institucional precisou reagir. A extrema direita se valeu disso como discurso de ódio e de ataque, colocando esses grupos como inimigos. As esquerdas, ao invés de focar no problema da desinformação sobre o assunto, se renderam a não falar sobre isso, a não polemizar, como se os problemas fossem os grupos e não a desinformação, os preconceitos.
O cientista político Josué Medeiros, da UFRJ e do Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira (Nudeb), avalia que a economia vai dominar o debate eleitoral, mas não vê as discussões sobre direitos como antagônicas e aponta para a importância da segmentação das campanhas:
— Ainda maior que a pressão das bases de movimentos sociais é a própria estratégia do bolsonarismo, que vai querer levantar a pauta das mulheres, LGBTQIAP+ e negros como fantasma. Um candidato como o Lula não vai ter como se furtar a responder.
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